(continua)
Esta água foi nascer/Naquela encosta do monte/Para vir dar de beber/A quem passar pela fonte
(continua)
A Prima A.
Pintura exibida na imagem - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)
Ao lado da casa da tia Anita morava a D. Elisa. Entrava-se para casa dela subindo as mesmas escadas do pátio da tia e passando pelo alpendre de que já falei. Se havia outra entrada não conheci, foi sempre este caminho que tomámos quando ia provar os vestidos lá a casa - um deles o de risquinhas cor- de- rosa, com peitilho de botõezinhos, que eu adorava e que estreei no exame da 4.ª classe. A D. Elisa, além de costureira, era senhora também de uma figura impressionante, daquelas que é suposto na tradição, nos livros infantis e no cinema, im-pre-ssio-nar mesmo as criancinhas, não me metia medo porque era afável e delicada e também porque, diga-se a bem da verdade, nunca estive sozinha com ela, mas o seu físico desmedido e as suas feições - era altíssima e espadaúda, tinha um grande nariz e o rosto cheio de pelos e verrugas - deixavam-me .... bem, não vale a pena entrar em detalhes, já viram muitos filmes e sabem como ficam os miúdos quando vêm as gémeas da D.Elisa.
Outras vezes - Mas vocês são cegos, não sabem que a miúda está aqui há que séculos? E, desta forma, lá se foi animando aquela minha breve lida diária, pois, mesmo que tivesse que esperar tinha companhia, e que rica companhia.
Ela era bem-disposta, afectuosa e simpática com toda a gente, contava coisas com graça, ria-se muito. E atrevida, brejeira até, com os homens, que a namoriscavam todos, novos e velhos, seduzidos, digo eu agora, por aquela força da natureza, jovem e bem feita, de pernas e braços descobertos, mãos na cintura estreita de onde caía, airosa sobre as ancas, uma saia rodada que ela, ao andar obrigava a esvoaçar.
Mas essa garridice desaparecia,
quando, não estando mais ninguém além de mim, eu não contaria para a descrição
requerida, saía de uma pequena camioneta que ficava ali parada até ser oportuno, o condutor com quem a Isabel se ia esconder num canto.
Eu só perdia a companhia porque,
antes, a Isabel garantia que logo seria atendida, ia-me embora e eles ali
ficavam. Outras vezes, quando eu chegava, já eles lá estavam, mas mesmo assim
ela não se esquecia de mim, deixava-o por uns segundos e vinha gritar à guarita
que me atendessem e voltava para a companhia dele.
Assim que deixou de ser necessária a
minha ida à vacaria, também deixei de ver a Isabel.
Depois, um dia, voltei a ter
notícias dela. Quando se tornou público que um corpo tinha sido encontrado
dentro de um poço. Informação a que as minhas companheiras de escola
acrescentaram mais, descobrira-se, depois de morta, que estava grávida.
Ao homem da camioneta continuei a vê-lo como sempre quando ia com o avô à missa ao Domingo a Sta. Margarida, acompanhado da mulher e dos filhos. Iam também para a missa.(MFM)
Naquele tempo, em que a
maquinaria agrícola era ainda reduzida, o trabalho no campo requeria muita
gente. Que, claro, já fora muita mais. Eu ouvia lá em casa queixarem-se da
falta de pessoal, apesar das jornas incomportáveis que estavam que não se podia.
E dos direitos, que tinha acabado a jornada de sol a sol, e as oito horas de
trabalho não podiam ser ultrapassadas. Para além disso, os jovens já não
queriam trabalhar no campo, os rapazes só muito novos, depois de virem da
tropa queriam outras coisas, as fabricas, as oficinas; as raparigas eram cada
vez mais requeridas em lugares outrora ocupados pelos homens que estavam na
guerra, o campo era agora das crianças acabadas de sair da escola que por ali
andavam atrás do meu avô, dos velhos e das mulheres. E um novo fenómeno tinha
vindo dar a machadada final no povo dos campos - a emigração.
A este propósito contou-se durante muito tempo o episódio do senhor Luís que representava a nova era em que estávamos a viver, em que nos tinham posto a viver, como dizia a minha avó. O Luís tinha ido trabalhar lá para casa ainda rapazote pequeno e por lá se fizera homem, o meu avô gostava dele e reconhecia-lhe qualidades para ser dono de si próprio.
Os meninos éramos nós. Eu e os meus irmãos, que ele
conhecera desde sempre, já lá trabalhava quando nós nascemos, tratara sempre
por meninos e a quem falava com todo o respeito no avozinho e na avozinha. Para
nós, claro, ele era o Luís.
Lá foi, e graças a Deus e à vontade e empenho
que o meu avô reconhecera nele, passados tempos voltou a matar saudades e
regularizar as suas dívidas que ele também era homem de boas contas. Quando
chegou lá a casa, abriu o portão verde que tantas vezes, desde criança
transpusera para ir ganhar o triste pão diário, e que agora franqueava já
senhor de si e do seu futuro, deparou com a minha irmã a brincar no pátio,
aquela menina a quem ele conhecera e tratara sempre por menina Joãozinha,
e disse-lhe no tom que o suor amassado nas terras de França autorizava - Oh
Maria João, vai avisar o teu avô que está aqui o Sr. Luís que lhe quer falar. Mas,
coitado, a ordem foi dada em hora de tão pouca sorte que a minha avó ouviu.
A partir daí, quando vinha a propósito falava-se sempre no senhor Luís. Dizia-se que fulano e beltrano tinham visto o senhor Luís, que o senhor Luís estava cá de férias, que o senhor Luís tinha comprado isto e aquilo. O tratamento trocista de senhor é que nunca mais o largou, agarrara-se-lhe ao nome que nem carrapato, ganhara-o bem ganho lá pela estranja juntamente com a pobre petulância. (MFM)
Na aldeia havia mesmo coisas
inéditas para mim. As uvas, as nêsperas, os figos, as romãs, os comboios. A principal era o comboio, ou seria o frio? Pensando bem não
sei o que mais me espantou. O que desagradou mais, sei, o frio, aliás o calor
também não era igual ao que conhecia, era tudo muito extremo e mau por ali, em
termos de clima. Os joelhos roxos, as frieiras e os quilos de cobertores na
cama para obter algum calor, tudo isso o meu corpo associa àquele primeiro
Inverno da minha vida.
O comboio foi uma surpresa
engraçada, era o encontro com um personagem fantástico, só conhecido dos livros …pouca terra, pouca
terra … e tornou-se um grande companheiro. Quantas noites eu acordava de noite,
envolta em pensamentos tristes e não era o tanger da campainha da passagem de
nível e a posterior uivo do comboio que me sossegavam?
Consequências da existência do comboio e da respetiva estação eram as pessoas e famílias que viviam em função dele. Eram ferroviários na generalidade, com profissões especificas que poderiam ser, por exemplo, fogueiro ou agulheiro (seja lá isso o que é, ou foi, são ocupações que vivem na minha memória como de ferroviários). A uma dessas famílias pertencia a C. de que já aqui falei, que eu tinha como velha solteirona, que vivia com os pais numa casa da CP de dois pisos, escura e feia, perto da passagem de nível. Desconheço mesmo como fazia parte das relações da minha avó. Naquela terra nunca me pareceu que as pessoas da família se dessem com as dos ferroviários. Mas, como a C. subira socialmente sendo professora, talvez isso a tornasse merecedora. Talvez, mas não muito. Recordo-me de a minha avó dizer, à minha frente, a C., -não te esqueças de dizer à C. que… , quando diria sempre a sr.ªD.Branca, a sr.ªD.Amélia, outras professoras, uma delas até família. Esta dispensabilidade do sr.ªD. relativamente à C. não abonava muito a favor da consideração em que era tida.
Fica assim a história coxa ... |