
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.
Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.
à ribeira lá ao fundo, e sobre esta, uma pontesinha aparentemente frágil permitia a ligação rápida da casa ao centro da povoação. Na horta medravam as árvores de fruta e os legumes de época, destinados à família, regados pela água do poço que tinha fama de ser a melhor nascente daquela várzea, talvez mesmo da região, nunca secava. Nos anos em que a secura apertava era ver os vizinhos virem abastecer-se de água ao nosso poço, o único que permitia, ainda, que os alcatruzes a transportassem fresca e transparente, das suas profundezas, puxados pela nora que a mula fazia movimentar.
Por baixo existia o celeiro,
onde, dentro de grandes arcas de madeiras repousavam o milho e o feijão, que se
mediam através de caixas de madeira – “os alqueires” - cada uma com seu tamanho
correspondente a determinada capacidade que se media precisamente em alqueires.
Já o azeite, ali também guardado em talhas de barro, media-se em almudes e, talvez
por isso, as bilhas de latão com tampa, de diversos tamanhos, nas quais também
se colocava o azeite, se designavam genericamente por “almudes”. Mas estas antigas unidades de medida, o alqueire e o almude, seriam só usadas por hábito e para uso doméstico, já tinham sido ultrapassados, oficialmente, pelo litro e pelo quilograma, pois também existiam uma balança e um "litro" se a intenção fosse vender.
O pátio lá atrás,
onde também havia um poço com nora e um tanque, onde a prima Anita lavava a roupa, estava rodeado de alpendres, um aberto com
gamelas baixas onde se avistavam as cabeças dos porcos sempre ocupados a comer, e onde, mesmo ao lado, descansavam há décadas as enormes galeras cheias de pó, antigos carros puxados por bois que tinham servido para transporte de mercadorias entre a estação local de caminhos de ferro e Tomar. Nos alpendres fechados, situava-se, num, o forno onde, depois de amassado pela Celeste, se fazia o pão
ao sábado, no outro, ao lado, era o local onde se preparavam os alimentos que requeriam mais
espaço e provocavam sujidade, se matavam e depenavam as galinhas, se faziam as
compotas, as caldas de tomate e pimento para todo o ano, a avó fazia queijo fresco quando havia leite de cabra ou ovelha, apertando com as duas mãos a coalhada até sair o soro e colocando-a depois em cinchos de aluminio, se retalhavam
azeitonas e cortavam finas as couves incapazes para a cozinha, misturando-as com farelo para
dar às galinhas.
Quando passaram a ser servidas à mesa dos restaurantes as migas
com couve como fazendo parte da “cozinha tradicional portuguesa”, não pude
deixar de recordar em como era percursor e requintado o menu das galinhas de
Porto da Lage. Aliás, eram mesmo bem tratadas, aquelas galinhas. Passavam o dia
numa capoeira grande e arejada neste pátio e, quando se punha o sol, abria-se-lhes a porta e elas iam sozinhas, atravessando o redil das cabras e ovelhas e o
palheiro da mula, até ao pátio da frente onde se situava o seu dormitório todo
emparedado, que as mantinha fora do alcance dos predadores. 































