Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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12 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa

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O meu desejo, bem egoísta reconheço, de ter netos*, consiste, além das outras razões igualmente egoístas que faz com que a maioria das pessoas com filhos os queira ter, consiste, dizia, em encontrar sentido para as minhas memórias. Para que as quero eu se não tenho a quem as deixar?
São um património que só pode encaminhar-se para quem o entenda. Eu sei que é assim porque foi assim que sucedeu comigo.
Os meus netos viverão num mundo novo, o tal admirável, cujos contornos não consigo imaginar.
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. 
Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.

Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.


Vivi uns tempos numa aldeia que pertencia ao presente daquele tempo, tempo de transição que se encaminhava para um futuro que traria progresso e melhores condições de vida; conheci uma família alargada que se amava entre si, mas que fora disso não parecia ter particulares estimas no lugar, que tinha fumos de grandeza que se sustentavam no facto de os restantes, muito pobres, os considerarem ricos; e habitei numa casa com dois avós que pertenciam, eles e a casa,  à categoria do mundo encantado.
É dessa terra, dessa famíla e dessa casa enfeitiçada, cujo sortilégio me acompanha os sonhos e desses dois velhos fascinantes, ele cismador, devoto e trabalhador, ela inteligente, fantasiosa e de humor corrosivo, que eu hei-de, um dia, falar aos meus netos. 

Crianças que, pertencentes a outro mundo, hão-de apreciar conhecer este outro, que era triste e alegre, justo e injusto, rico e pobre, como o deles, como o de todos os tempos, mas onde as pessoas iguais às de sempre, viviam de outra forma, tinham outros hábitos, usavam outros objectos e, sobretudo, tinham outros sonhos. E onde, bem no centro desse mundo, para mim, estava a casa dos avós. Começarei por ela.

Era uma casa de lavoura. Sede da agricultura praticada em menos de uma dúzia de parcelas de terra, que por ali se chamam fazendas, dispersas pela freguesia, algumas, mas a maioria próxima da casa. Nas fazendas  mantinham-se, desde que havia memória, oliveiras centenárias, vinhas e figueiras e plantavam-se cereais na época própria. Em frente à casa, atravessada a estrada de terra, havia a “horta”, perpendicular  
à ribeira lá ao fundo, e sobre esta, uma pontesinha aparentemente frágil permitia a ligação rápida da casa ao centro da povoação. Na horta medravam as árvores de fruta e os legumes de época, destinados à família, regados pela água do poço que tinha fama de ser a melhor nascente daquela várzea, talvez mesmo da região, nunca secava. Nos anos em que a secura apertava era ver os vizinhos virem abastecer-se de água ao nosso poço, o único que permitia, ainda, que os alcatruzes a transportassem fresca e transparente, das suas profundezas, puxados pela nora que a mula fazia movimentar.
Logo à entrado de casa, à direita do pátio, ficava a casa de habitação no andar superior, a adega no piso térreo, com o competente lagar de vinho, de pedra, contiguo à única janela estreita, no meio do qual estava disposta uma prensa, destinada a espremer o mosto do bagaço das uvas. No resto do espaço, sempre fresco na calma do Verão, ficavam as alfaias agrícolas, a carroça e a charrete que em tempos servira para levar a avó às compras a Tomar, e, viam-se com dificuldade lá ao fundo, no meio da escuridão, encostados às paredes barris de madeira de vários tamanhos desde os gigantescos até aos pequenitos que hoje se vêm a servir de decoração nas casas típicas. Mas tudo isso, lagar e barris, já não tinha uso no meu tempo, apenas as grandes dornas entravam ao serviço uma vez por ano para transportarem as uvas, na carroça ou num tractor emprestado, até à adega cooperativa em Tomar, durante a vindima.
As acomodações, destinadas aos animais e a diversos arrumos, sucediam-se lá para dentro, separadas em lojas, quando no piso térreo, ou sótãos, quando no de cima. Havia o sótão das batatas e das cebolas, onde estas se dispunham em réstias e as outras se espalhavam pelo chão sobre sacas de sarapilheira. O "palheiro" ficava igualmente num sótão, localizado numa grande arrecadação de passagem, de alto pé direito onde, em cima, se colocavam os fardos de palha ou erva seca e por baixo residia a pobre mula, quase às escuras, por vezes acompanhada de uma vaca ou boi quando, não sei porquê, passavam acidentalmente lá por casa

Mas havia também um sótão como todos os que conhecemos, onde se guardavam as velharias, móveis antigos, alguns bons demais para estarem a uso, argumento formidável que só poderia vir da boca da avó (não era ironia,os móveis eram de facto bons) objectos de uso pessoal, espelhos e quadros provenientes de um primo de um bisavô de Tomar, que fora criado de quarto do rei D.Luís, o qual lhe teria dado aquelas prendas – a importância que se dava aquilo era nenhuma!, uma pequena arca encoirada a que eu sempre aspirei e que os deuses, invejosos, mais tarde terão desviado para o Olimpo, e outras coisas consideradas sem préstimo de momento, tudo envolto nos competentes reposteiros tecidos pelas aranhas, mas que eu não hesitava em transpor para entrar naquele mundo maravilhoso, onde havia, entre outros tesouros uma arca cheia de revistas de moda dos anos trinta e quarenta e de livros antigos, alguns escolares, que eu adorava folhear.


Por baixo existia o celeiro, onde, dentro de grandes arcas de madeiras repousavam o milho e o feijão, que se mediam através de caixas de madeira – “os alqueires” - cada uma com seu tamanho correspondente a determinada capacidade que se media precisamente em alqueires. Já o azeite, ali também guardado em talhas de barro, media-se em almudes e, talvez por isso, as bilhas de latão com tampa, de diversos tamanhos, nas quais também se colocava o azeite, se designavam genericamente por “almudes”. Mas estas antigas unidades de medida, o alqueire e o almude, seriam só usadas por hábito e para uso doméstico, já tinham sido ultrapassados, oficialmente,  pelo litro e pelo quilograma, pois também existiam uma balança e um "litro" se a intenção fosse vender.
O pátio lá atrás, onde também havia um poço com nora e um tanque, onde a prima Anita lavava a roupa, estava rodeado de alpendres, um aberto com gamelas baixas onde se avistavam as cabeças dos porcos sempre ocupados a comer, e onde, mesmo ao lado, descansavam há décadas as enormes galeras cheias de pó, antigos carros puxados por bois que tinham servido para transporte de mercadorias entre a estação local de caminhos de ferro e Tomar. Nos alpendres fechados, situava-se, num, o forno onde, depois de amassado pela Celeste, se fazia o pão ao sábado, no outro, ao lado, era o local onde se preparavam os alimentos que requeriam mais espaço e provocavam sujidade, se matavam e depenavam as galinhas, se faziam as compotas, as caldas de tomate e pimento para todo o ano, a avó fazia queijo fresco quando havia leite de cabra ou ovelha, apertando com as duas mãos a coalhada até sair o soro e colocando-a depois em cinchos de aluminio, se retalhavam azeitonas e cortavam finas as couves incapazes para a cozinha, misturando-as com farelo para dar às galinhas. 
Quando passaram a ser servidas à mesa dos restaurantes as migas com couve como fazendo parte da “cozinha tradicional portuguesa”, não pude deixar de recordar em como era percursor e requintado o menu das galinhas de Porto da Lage. Aliás, eram mesmo bem tratadas, aquelas galinhas. Passavam o dia numa capoeira grande e arejada neste pátio e, quando se punha o sol, abria-se-lhes a porta e elas iam sozinhas, atravessando o redil das cabras e ovelhas e o palheiro da mula, até ao pátio da frente onde se situava o seu dormitório todo emparedado, que as mantinha fora do alcance dos predadores. 
Por essa hora, também os pombos estavam de regresso de um longo dia fora de casa e aguardavam que lhes fosse aberta uma guarita no mesmo local para, um a um, por uma ordem que só eles saberiam, se instalarem para dormir.
Era aquele o último, talvez único, acto que, a avó ou eu, estávamos obrigadas antes de “ir para cima”, fechar a porta do galinheiro e a guarita dos pombos. O que não queria dizer que o avô não fosse, depois, confirmar quando “fechasse tudo”.


Já há muito que o pessoal se fôra, viera das fazendas, deixara o que trouxera, colheitas, mato, erva, e o material, a enxada, a forquilha, o que fosse, se despedira “até amanhã se Deus quiser” e partiam para suas casas levando fruta se a havia ou lenha se fosse Inverno, “Vá com Deus, primo” respondia o avô. Muitos dos trabalhadores, gente muito pobre, do Paço da Comenda, eram família, povo sem sorte que ficara pelo caminho, mas não deixavam de ser parentes e assim tratados. Agora restava ao avô tratar do gado, dar-lhes comida, “tratar das camas”
 era de manhã quando tivesse ajuda, percorrer todos os cantos com a lanterna acesa assegurando-se que tudo estava como deveria e voltar a ver se os portões, os três que franqueavam o seu forte ao exterior, estavam bem fechados. Só depois subia. Ao cimo das escadas, onde havia um lavatório, lavava as mãos, apagava a lanterna e deixava-a aí. “Boa noite se Deus quiser” dizia  entrando finalmente na cozinha alumiada pelo candeeiro a petróleo.(MFM)
     
(continua)






*Isto foi escrito antes de ter netos. Hoje a última coisa para que "os quero" é para lhes transmitir memórias, mas admito que já os levei a fazer "visita guiada" ao que aqui descrevo.

11 de fevereiro de 2021

Memórias - A Prima A.

 

A Prima A.

 

Ao lado da horta existia a fazenda da prima A. Tinha um pereiro, que deitava ramadas para a estrada, por cima do muro de pedras, foi o único pereiro que conheci na vida, nem sei se o nome será este, sei que se chama peros à fruta que dá. Considerando que as pereiras dão peras, concluo que se aquele dava peros, seria um... ou não? Também não interessa, os peros, verdes, pequeninos eram deliciosos, costumávamos apanhá-los da estrada, a prima não se importava, até fazia gosto. Ao lado, ainda lá está bem maltratada, uma roseira de Santa Teresinha, de florinhas eternas, na minha imaginação estarão sempre lá, pequeninas e perfumadas, cheirando a rosas como era de obrigação delas antigamente. A minha madrinha Alice, amiga de flores, ao contrário da minha avó, ia lá por vezes apanhar uns raminhos, colocava-os depois numa jarrinha em cima da cómoda. As rosas, os cheiros da cera dos móveis e do chão, do calor seco na penumbra das portadas das janelas fechadas de Agosto, são estes os aromas sob os quais escrevo tudo o que me lembro


Pois a prima A. tinha um burro, ia 
para a fazenda de burro, não morava longe, era logo depois da ponte, embora aos meus dez anos tudo fosse muito mais longe que hoje. Mas seria perto, tanto que ela, à volta, ia muitas vezes a pé, levando o burrinho à arreata. A razão da vinda do animal, era a rega e o transporte de produtos. Mal chegava, colocava o burrinho na nora, e ele ali passava a tarde, ou a manhã, a dar voltas ao poço, puxando os alcatruzes, cheiinhos da água transparente, as vezes parecia-me azul, e despejá-los no tanque. Daqui a água saía a correr, ia pelos regos, direita às hortaliças ou ao milho, ou, nas grandes calmas, às caldeiras das árvores, para que dessem bom fruto na época. A prima cuidava da rega, encaminhando a água, deixava-a entrar nos canteiros fechava as saídas com terra com ajuda da enxada, esperava que todo o canteiro ficasse encharcado, depois fechava o canteiro, a água corria outra vez livremente até ao próximo e o processo recomeçava.

Eu estou a inventar porque nunca vi de perto a prima A. a regar, mas vi muitas vezes outras gentes e tudo me diz que ela seguia este processo secular, quando eu a observava lá de casa, corcovada sobre a enxada no meio das couves e das abóboras. No Verão a prima ceifava, pequenas quantidades é certo, para levar para os coelhos lá para casa, para as grandes colheitas arranjava ajuda, mas tudo se completava num dia, a fazenda era pequena. Por vezes acompanhava-a uma sobrinha, era professora algures, solteirona, mas aquelas mulheres não encontravam par porquê, caramba? E vinha pelas férias, à tarde de sábado ou no Domingo, aqui só para colher qualquer repolho ou pé de alface, que em dia santo não se trabalhava. Ao fim do dia a prima carregava os seirões com produtos da sua horta e lá ia ela, de chapéu de palha, a pé, mais o burrinho, estrada fora, quando a melancolia já descia por cima da nossa casa e se trocavam as boas noites prima, até amanha se Deus quiser.
Agora que olho para trás e tento recordar a sua figura, imagino que talvez ela fosse uma excêntrica, uma velha hippie de 70 anos, afinal aquele era o tempo deles, e não o soubesse. Não era uma camponesa, vestia roupas simples, saias estreitas de fazenda, blusas de algodão, sapatos de grosso cabedal, casaco comprido de lã no Inverno, nada de tamancos ou lenços na cabeça, dir-se-ia uma modesta senhora da cidade, talvez mesmo uma estrangeira, uma country woman inglesa.

Era interessante de ver, aquela velha magra, morena de sobrancelhas carregadas, cabelos ainda pretos puxados atrás num toutiço, um pouco alquebrada dos ombros, de lenço de seda ao pescoço no Verão e xaile de malha castanha no Inverno, sentada de lado encima do seu burrinho ou com ele a pé pela mão. Mantinha sempre uma cara séria, nunca a vi sorrir, também a ouvi falar poucas vezes, mas era solícita e disponível, sempre pronta a ajudar, sobretudo, muito trabalhadeira, a minha avó admirava-a muito. Curioso que a minha avó, que nunca pisou a terra para a cultivar, raramente para apanhar alguma coisa da horta, que se achava superior e olhava com condescendência para quem o fazia, tinha consideração pela prima A. A ponto de lhe conceder a honra de sua sucessora.

Metera a avó na cabeça que morreria antes do marido e preocupava-se com quem tomaria conta dele depois da sua partida. Dedicava-se por isso, com muita seriedade, coisa que os adultos conhecedores da coisa achavam, alguns mórbido, outros uma brincadeira ou mesmo loucura, mas que eu, com o meu pragmatismo da adolescência até nem achava mal (atendendo a que ele não sabia escolher a roupa que vestia, nem que era preciso aquecer água para fazer chá ou café) a seleccionar, a partir de solteiras e viúvas conhecidas, a futura companheira certa para o seu marido. Depois de criteriosa escolha entre candidatas que nunca imaginaram terem estado sujeitas a semelhante apuramento, foi eleita a prima A. como a herdeira ideal.
E a avó tratou de o comunicar ao interessado. Procedeu como sempre que pretendia apresentar-lhe uma questão séria, na convicção que ele reagiria como era habitual. Passavam-se assim os interlocutórios entre o casal: quando a  refeição (o almoço a que eles ainda chamavam jantar, a noite não era ajeitada para se discutir coisa nenhuma) já se aproximava do fim, ela dizia: - Olha João, estive a pensar numa coisa, vê lá o que te parece ….Ele continuava a comer sem olhar, enquanto ela ia falando. Se a ideia exposta lhe agradava, interrompia rápido e dizia – Muito bem… e seguia-se a escalpelização do assunto. Se não lhe agradava, deixava-a acabar, nunca a interrompia, terminava a refeição com calma, arrumava os talheres no prato e levantava-se da mesa. Sem dizer uma palavra. Chegado à porta da cozinha, procedia conforme o costume diário, virava-se e informava-a sobre o que iria fazer e onde estaria, de tarde. Estava dado o sinal de que o assunto não devia voltar a ser falado (antes que se levante por aí a gritaria  em uso sobre a condenação retroactiva do machismo, diga-se, neste caso, em defesa do avô,  que ela, por vezes, tinha ideias de tal forma mirabolantes, de irritar um santo, comentava a nora e minha mãe -esta que vos conto perto de outras é pacifica- que ele, ao fim de cinquenta anos tinha mesmo que ter arranjado uma estratégia de sobrevivência).
Desta feita, porém, depois de a ouvir,  reagiu -Não serve, é muito negra!- continuou a comer.
Agora sim! Já pode começar a desanca que eu acompanho! Homens! Insensibilidade masculina no seu melhor, só pensam neles! Pobre avó, tão empenhada no bem-estar dele! Pobre prima, preterida por não se encaixar no seu ideal de beleza, não obstante as suas inúmeras qualidades!
(MFM)

 

Pintura exibida na imagem  - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)

 

10 de fevereiro de 2021

Memórias- A Augusta

 


          A Augusta

Ao lado da casa da tia Anita morava a D. Elisa. Entrava-se para casa dela subindo as mesmas escadas do pátio da tia e passando pelo alpendre de que já falei. Se havia outra entrada não conheci, foi sempre este caminho que tomámos quando ia provar os vestidos lá a casa - um deles o de risquinhas cor- de- rosa, com peitilho de botõezinhos, que eu adorava e que estreei no exame da 4.ª classe. A D. Elisa, além de costureira, era senhora também de uma figura impressionante, daquelas que é suposto na tradição, nos livros infantis e no cinema, im-pre-ssio-nar mesmo as criancinhas, não me metia medo porque era afável e delicada e também porque, diga-se a bem da verdade, nunca estive sozinha com ela, mas o seu físico desmedido e as suas feições - era altíssima e espadaúda, tinha um grande nariz e o rosto cheio de pelos e verrugas - deixavam-me .... bem, não vale a pena entrar em detalhes, já viram muitos filmes e sabem como ficam os miúdos quando vêm as gémeas da D.Elisa. 

Como se tudo isso não não bastasse, a D. Elisa era de Estarreja, uma terra, e até uma palavra, que eu custei a acreditar que existisse, parecia-me um arremedo de uma conjugação do verbo estar: que eu esta-rre-ja, que tu estarrejas, ... que Estarreja me perdoe...coisas de crianças.

Mas, vá-se lá saber porquê, havia mais gente de Estarreja em Porto da Lage. Uma delas a Augusta, que fora pequena lá para casa, lá crescera e de lá casara, tendo os avós por padrinhos. Eu só me lembro dela já como vizita, a viver em Moscavide e a trabalhar numa fábrica da Nestlé. A avó gostava dela e orgulhava-se do seu percurso. Penso que se orgulhava, mais ainda, do que ela própria tinha feito pela Augusta.
Ela viera, nos anos quarenta, não sei como, muito jovem e, para além de analfabeta, muito ignorante, para casa dos meus avós. 
Contava a avó que um dia, quando a tinham mandado apanhar a azeitona do vento (aquela que cai naturalmente devido à ventania) ela disse que não ia. Que desculpassem mas sempre tinha aprendido lá na terra dela que não se colhia nada da terra dos outros. Deslindada a confusão lá se percebeu: ela não queria, e fazia muito bem, ir apanhar a azeitona na fazenda do Bento, um vizinho lá dos Olivais. 
Em outra ocasião, tendo sabido que a gente abonada punha o dinheiro no banco, não deixou de mostrar o seu espanto e de perguntar a razão, porquê precisamente num banco e não noutro sitio mais abrigado, numa caixa por exemplo, quando um banco tinha um buraco no meio por onde o dinheiro cairia?

A Augusta não era, portanto, burra,  pensava com os instrumentos que conhecia e, mais do que isso, era como deve ser, quer dizer, distinguia o bem do mal, tinha valores. Faltava-lhe o conhecimento e o sotaque exigido, pois falava com o assento particular da sua gente que troca os b pelos v e o inverso, diz avelhas e obelhas  e que bai ber e oubir as vandas de música, o que a avó considerarava muito feio. Mas tudo se compôs, aprendeu a falar, a estar e tirou a 3.ª classe nocturna, faltando-lhe a 4.ª por não ter sido leccionada em Porto da Lage.
Quando a conheci era uma verdadeira lisboeta, desenvolta no falar e no vestir, que vinha sempre com o marido, de comboio, passar o Natal aos Olivais. Depois, durante meses, havia sempre, em vez de cevada,  chocolate em pó para pôr no leite (MFM)




9 de fevereiro de 2021

Memórias - A Isabel

 

                                                     A Isabel





Por vezes eu era requisitada para fazer

 recados. Ia à mercearia ou à farmácia, de saco e porta-moedas lá dentro, com a recomendação de nunca o tirar para que não se perdesse (uma vez aconteceu, por ir com ele na mão; quando, depois do drama advindo do caso, o encontrei, ao fim de muito procurar, no meio das ervas logo a seguir à ponte, a tia Maria congratulou-me, para ela isso era bom sinal, significava que andas de bem com Deus, menina). Eram, a mercearia e a farmácia, lugares onde era conhecida, até mesmo apaparicada, e por isso agradáveis de ir. Mas nem sempre assim foi. Houve uma ocasião em que, com certeza por motivos imperativos de que não me lembro, fui mandada sair do circuito habitual e ir mais longe.


Fiquei encarregada de, ao fim do dia, ir buscar o leite à 
vacaria. Aquilo teve a sua graça ao princípio, era uma forma de, equipada com fervedor e carteira dentro do saco habitual, me deslocar para uma zona desconhecida da povoação. 
Mas rapidamente tudo se tornou muito maçador, passei, embora sem consciência mas sentindo-o, à classe dos trabalhadores invisíveis e humilhados e deixei de gostar da tarefa. Eu chegava à guarita que havia no muro da vacaria, através da qual, pelo menos no meu caso, se atendia o público e ficava por ali à espera, até que, por sorte, aparecesse um adulto que pretendesse, também, ser atendido. 
Cedo fiquei a saber que, mesmo que me vissem, nunca me atenderiam, desde que estivesse sozinha. Ainda não tinha aquecido o lugar e já estava desejosa de me desembaraçar dele, quando a Isabel veio transformar esta minha desamada aventura.                                         
Era uma rapariga despachada, criada na casa de um familiar,  já não sei qual, e me conhecia daí, que, ao chegar gritava lá para dentro–Oh seus calaceiros, não vêm que têm aqui fregueses. Toca a despachar.

Outras vezes - Mas vocês são cegos, não sabem que a miúda está aqui há que séculos? E, desta forma, lá se foi animando aquela minha breve lida diária, pois, mesmo que tivesse que esperar tinha companhia, e que rica companhia.

Ela era bem-disposta, afectuosa e simpática com toda a gente, contava coisas com graça, ria-se muito. E atrevida, brejeira até, com os homens, que a namoriscavam todos, novos e velhos, seduzidos, digo eu agora, por aquela força da natureza, jovem e bem feita, de pernas e braços descobertos, mãos na cintura estreita de onde caía, airosa sobre as ancas, uma saia rodada que ela, ao andar obrigava a esvoaçar.

Mas essa garridice desaparecia, quando, não estando mais ninguém além de mim, eu não contaria para a descrição requerida, saía de uma pequena camioneta que ficava ali parada até ser oportuno, o condutor com quem a Isabel se ia esconder num canto.

Eu só perdia a companhia porque, antes, a Isabel garantia que logo seria atendida, ia-me embora e eles ali ficavam. Outras vezes, quando eu chegava, já eles lá estavam, mas mesmo assim ela não se esquecia de mim, deixava-o por uns segundos e vinha gritar à guarita que me atendessem e voltava para a companhia dele.

Assim que deixou de ser necessária a minha ida à vacaria, também deixei de ver a Isabel.

Depois, um dia, voltei a ter notícias dela. Quando se tornou público que um corpo tinha sido encontrado dentro de um poço. Informação a que as minhas companheiras de escola acrescentaram mais, descobrira-se, depois de morta, que estava grávida.

Ao homem da camioneta continuei a vê-lo como sempre quando ia com o avô à missa ao Domingo a Sta. Margarida, acompanhado da mulher e dos filhos. Iam também para a missa.(MFM)



                                      


8 de fevereiro de 2021

Memórias - Aos Domingos


                          Aos Domingos









 
 
                     
Aos sábados à tarde, de manhã havia escola, levavam-me a apanhar a carreira, para ir a Tomar visitar o resto da família. Atravessávamos a aldeia silenciosa, não se via ninguém, o horário era pouco depois do almoço, passávamos pela passagem de nível e parávamos no cais da cal, onde ficava a paragem.
Como íamos sempre muito cedo, havia muito cuidado, que não houvesse atrasos, lembro-me de me aborrecer terrivelmente na espera, e, quando já tinha saltado tudo o que havia para saltar e estava ao meu alcance para pesquisar (por ali tudo era muito solitário aos fins de semana e já começava a ficar em ruínas), levava um livro para ler.
Depois, com o dinheiro contadíssimo na mão direita fechada, o da volta, igualmente contado, para não ser enganada nos trocos, ia na carteira depositada dentro da pequena maleta, subia para a camioneta enquanto era recomendado ao motorista que esta menina, qual encomenda, era para ficar em frente ao turismo
Domingo ao fim do dia fazia o percurso inverso.
Quando ficava em Porto da Lage, ao domingo ia com o avô à missa de manhã, a menos que a tia Alice estivesse por lá ou se arranjasse alguém para ficar em casa, a avó não ia. Desde que, há muitos anos houvera um assalto, que nunca se deixava a casa sozinha. À missa, comigo, a pé, ia-se a Sta. Margarida ou a S. Silvestre, nunca mais longe. Fui, poucas vezes, a Cem Soldos, mas de carroça, com o avô ou com a tia Maria. Fosse pela idade ou pela condição física dispensavam-me de acompanhar o avô que, quando as suas obrigações o impediam de ir aos locais mais perto, ou estes, por qualquer motivo mudavam os horários previsíveis, ia a Porto Mendo, Casal da Fonte ou até Fungalvaz.

Á tarde o avô visitava os familiares ou amigos doentes. Quando se tratava de senhoras eu ia também. Visita habitual ao domingo à tarde era à tia Anita*. Não sei se estaria exactamente doente, mas não saía de casa. Uma casa bonita à beira da ribeira, por onde se entrava por um portão de madeira e, atravessando um túnel que ficava por baixo do edifício, se chegava a um pátio fechado, quadrangular onde, lá ao fundo, havia capoeira e coelheiras, e um curral com ovelhas que, vendo-nos, deitavam as cabeças para fora e com os seus arrastados mééé….. nos davam as boas vindas. À entrada do pátio costumava estar, à espera do avô, o tio António, marido da tia. Eu achava que os dois podiam ser gémeos, não fosse o tio ser mais feio, tinha um dos olhos grande, azul e sem expressão, era de vidro. Mas de resto eram iguais, no tamanho e no tipo, ambos de fato de domingo, camisa branca e gravata, sapatos engraxados. Era bonito de ver aqueles dois velhos cumprimentarem-se com afecto – Como vai compadre?- apertando com força as grandes mãos calejadas. Penso que o avô, tirando os irmãos, tratava a parentela inteira por compadre. Era padrinho de toda a gente, de todos os sobrinhos mais velhos, sinal da consideração que lhe tinham, dizia a avó orgulhosa, atendendo a que havia um irmão mais velho, preterido em relação a ele.

A seguir à curta conversa de circunstância (assunto maior a tratar ficava para depois, quando o avô descesse sozinho e fossem juntos ver a nova ovelha ou o adiantado das favas ou dos melões na horta que se estendia lá ao fundo), o tio ficava cá em baixo e nós subíamos para o lindo alpendre de madeira que dava para o pátio, onde, invariavelmente estava sentada a tia. Eu percebia que o avô e ela eram irmãos que se estimavam. Mais do que a cerimónia e consideração com que aqueles tios se tratavam todos uns aos outros, com aquela o avô parecia transfigurar-se, ria-se e falava até. O avô nunca falava, devo ter caminhado sozinha com ele longos quilómetros durante largas horas sem trocarmos palavra. Saíamos mudos de casa e entrávamos calados. Mas não me lembro de isso me incomodar, falar também não era, nunca foi, coisa em que gastasse muito o meu tempo
. 
Ouvir sim, gostava, e gosto, de ouvir quem não canse, quem não se queixe se não tem de quê, quem não fale só de si sem cuidar se interessa a quem ouve e quem conte boas histórias. Era o caso da tia Anita, uma senhora que se interessava por quem chegava, informava que era surda e por isso pedia ao interlocutor que se fizesse entender (o único Mota, além de mim, que vi fazer isso, oh seus vaidosos! acham que os outros não percebem que são moucos???) e contava coisas antigas. Falou-me do pai (custava a crer a uma miúda pequena que uma pessoa com aquela idade tivesse tido pai!) quando uma vez me perguntou pela escola e divagou sobre a importância da educação, o pai mandara os filhos todos à escola, mesmo as raparigas, mais valia perder as oliveiras que fossem precisas mas que se desse as letras aos filhos, teria ele dito.
Falava também naquele sitio mítico onde tinha nascido, a quinta da Belida, lugar que, quando olho para trás vejo agora que só na boca dela parecia real. Os outros velhos não falavam disso, quando ela perguntava: Lembras-te João?, ele torcia a boca e abanava a negativamente a cabeça,  e os da geração seguinte viam-na quase como uma fantasia, sinal que pouco lhes tinha sido transmitido sobre isso.
Quando a conversa não era comigo eu escapulia-me lá para dentro. Na sala, mantida na penumbra com as portadas semi-fechadas, para se preservar do muito calor lá de fora, nos cantos, havia floreiras altas de madeira nas quais assentavam pastoras e príncipes de faiança, em que elas transportavam grandes cestas carregadas de frutas ou flores, tudo pintado num delírio de cor que me encantava. Eu não me cansava de as admirar, ia visitá-las sempre que ia lá a casa. Ainda hoje estas figuras são a minha perdição.
Pelo crepúsculo voltávamos para casa, pela estrada ou pela nossa ponte, consoante o tempo ou a localização do visitado, silenciosos, tal como tinhamos ido.(MFM)

* Já aqui falei nas outras   duas   queridas  tias    



5 de fevereiro de 2021

Memórias - O Sr. Luís.

 

                                                           O sr. Luís

Naquele tempo, em que a maquinaria agrícola era ainda reduzida, o trabalho no campo requeria muita gente. Que, claro, já fora muita mais. Eu ouvia lá em casa queixarem-se da falta de pessoal, apesar das jornas incomportáveis que estavam que não se podia. E dos direitos, que tinha acabado a jornada de sol a sol, e as oito horas de trabalho não podiam ser ultrapassadas. Para além disso, os jovens já não queriam trabalhar no campo, os rapazes só muito novos, depois de virem da tropa queriam outras coisas, as fabricas, as oficinas; as raparigas eram cada vez mais requeridas em lugares outrora ocupados pelos homens que estavam na guerra, o campo era agora das crianças acabadas de sair da escola que por ali andavam atrás do meu avô, dos velhos e das mulheres. E um novo fenómeno tinha vindo dar a machadada final no povo dos campos - a emigração.

A este propósito contou-se durante muito tempo o episódio do senhor Luís que representava a nova era em que estávamos a viver, em que nos tinham posto a viver, como dizia a minha avó. O Luís tinha ido trabalhar lá para casa ainda rapazote pequeno e por lá se fizera homem, o meu avô gostava dele e reconhecia-lhe qualidades para ser dono de si próprio.

 Quando o rapaz quis levantar voo e ir buscar condições para isso, indo para França, o meu avô não só o apoiou como lhe forneceu os meios para o fazer, para os transportes, para ir a salto, não sei, só sei que o Luís precisava de dinheiro para ir, e que ele lho proporcionou. E lá foi, lacrimejante despediu-se como quem ia pró Brasil, agradeceu mil e uma vezes, e mil e uma vezes se despediu do sr. João, da senhora e dos meninos. 

Os meninos éramos nós. Eu e os meus irmãos, que ele conhecera desde sempre, já lá trabalhava quando nós nascemos, tratara sempre por meninos e a quem falava com todo o respeito no avozinho e na avozinha. Para nós, claro, ele era o Luís.

Lá foi, e graças a Deus e à vontade e empenho que o meu avô reconhecera nele, passados tempos voltou a matar saudades e regularizar as suas dívidas que ele também era homem de boas contas. Quando chegou lá a casa, abriu o portão verde que tantas vezes, desde criança transpusera para ir ganhar o triste pão diário, e que agora franqueava já senhor de si e do seu futuro, deparou com a minha irmã a brincar no pátio, aquela menina a quem ele conhecera e tratara sempre por menina Joãozinha, e disse-lhe no tom que o suor amassado nas terras de França autorizava - Oh Maria João, vai avisar o teu avô que está aqui o Sr. Luís que lhe quer falar. Mas, coitado, a ordem foi dada em hora de tão pouca sorte que a minha avó ouviu.



A dívida foi paga, mas o pobre Luís, proscrito, desapareceu de vez das nossas vidas e, se calhar, nunca percebeu porquê. Tivesse sido o meu avô a ouvir, acharia graça à prosápia e, talvez, com a sua fleuma tivesse feito o Luís entender e o facto ficasse entre eles, mas a minha avó não era assim, gente ingrata e que não conhecia o seu lugar não merecia, definitivamente, mais a nossa atenção



A partir daí, quando vinha a propósito falava-se sempre no senhor Luís. Dizia-se que fulano e beltrano tinham visto o senhor Luís, que o senhor Luís estava cá de férias, que o senhor Luís tinha comprado isto e aquilo. O tratamento trocista de senhor é que nunca mais o largou, agarrara-se-lhe ao nome que nem carrapato, ganhara-o bem ganho lá pela estranja juntamente com a pobre petulância. (MFM)


4 de fevereiro de 2021

Memórias -O Joaquim

 

                                                              O Joaquim

 

Na aldeia havia mesmo coisas inéditas para mim. As uvas, as nêsperas, os figos, as romãs, os comboios. A principal era o comboio, ou seria o frio? Pensando bem não sei o que mais me espantou. O que desagradou mais, sei, o frio, aliás o calor também não era igual ao que conhecia, era tudo muito extremo e mau por ali, em termos de clima. Os joelhos roxos, as frieiras e os quilos de cobertores na cama para obter algum calor, tudo isso o meu corpo associa àquele primeiro Inverno da minha vida.

O comboio foi uma surpresa engraçada, era o encontro com um personagem fantástico, só conhecido dos livros …pouca terra, pouca terra … e tornou-se um grande companheiro. Quantas noites eu acordava de noite, envolta em pensamentos tristes e não era o tanger da campainha da passagem de nível e a posterior uivo do comboio que me sossegavam?

O comboio estava indelevelmente agarrado àquela terra, ou a terra ao comboio. Talvez já não se vivesse totalmente em função dele, mas ele era parte integrante da vida daquela gente. E da morte também. Por vezes o comboio parava, abruptamente, sem ser na estação. Algo tinha acontecido. O rapazio corria a saber novidades. Ao outro dia, ou mesmo no próprio, se o horário da escola o permitisse, no recreio desfilavam as novas. Fora fulano ou então um desconhecido. Descreviam minuciosamente o que tinham visto. Mas a história variava pouco. As botas longe, os pés despegados, os miolos aqui e ali. Desconfio que cada um deles teria uma única vez visto o triste espectáculo e depois o replicava. Mas os suicídios, nunca ouvi falar em acidentes, com recurso ao comboio sucediam-se. Aliás não era raro ouvir contar, no recreio da escola ou no caminho para a catequese, sempre com detalhes escabrosos que os infantes meus contemporâneos pareciam escolher especialmente para mim, que alguém acabara com a própria vida, fosse na linha do comboio, enforcado numa oliveira ou deitado a um poço.

Consequências da existência do comboio e da respetiva estação eram as pessoas e famílias que viviam em função dele. Eram ferroviários na generalidade, com profissões especificas que poderiam ser, por exemplo, fogueiro ou agulheiro (seja lá isso o que é, ou foi, são ocupações que vivem na minha memória como de ferroviários). A uma dessas famílias pertencia a C. de que já aqui falei, que eu tinha como velha solteirona,  que vivia com os pais numa casa da CP de dois pisos, escura e feia, perto da passagem de nível. Desconheço mesmo como fazia parte das relações da minha avó. Naquela terra nunca me pareceu que as pessoas da família se dessem com as dos ferroviários. Mas, como a C. subira socialmente sendo professora, talvez isso a tornasse merecedora. Talvez, mas não muito. Recordo-me de a minha avó dizer, à minha frente, a C., -não te esqueças de dizer à C. que… , quando diria sempre a sr.ªD.Branca, a sr.ªD.Amélia, outras professoras, uma delas até família. Esta dispensabilidade do sr.ªD. relativamente à C. não abonava muito a favor da consideração em que era tida.


Fica assim a história coxa ...

Sempre a ver com o comboio, outro marco importante da terra eram as “passagem de nível”. Como todas aqui eram “vigiadas”, delas faziam parte, também, uma casa baixa e branca onde morava a “guarda”, mulher encarregue de fechar as barreiras de acesso à estrada e de se pôr de “bandeirinha” na mão, perigosamente, no meio do ruído e do turbilhão, ao lado da linha enquanto o comboio passava. Morava com toda a sua família, numerosa muitas vezes, e, assim, daquelas casinhas partiam pela manhã muitos pequenos todos os dias para a escola. Um deles, filho da guarda da passagem de nível da estação, era um rapagão, o Joaquim, Jaquim da passage, seu nome de guerra, rigoroso capitão da malta, de melena rebelde e olhar desafiador, sempre de fisga na mão, mais amigo de andar aos pássaros do que de escola e que, talvez por isso, apesar do tamanho e da idade, andava na 2.ª classe. Constava ser também, embora discreto, um admirador meu, “gostava de mim”, diziam-me as minhas colegas. Sendo que o caso nunca ficou apurado, fosse por pudor ou por não ser verdade, certo é que, com muita pena minha, não tenho mais para dizer sobre este frustrado idílio infantil. 
Fica assim a história coxa, sem o complementosinho romanesco que assenta sempre bem nos contos sobre crianças solitárias.
Como consolo só posso  socorrer-me, se não tem o mesmo impacto tem ao menos um final feliz, da evolução sentimental, e de mudança de estado, ocorrida na vida da C. que, afinal, nem era velha nem ficou solteirona. Anos mais tarde veio a casar com alguém conhecido desde sempre da minha família materna e da minha avó de Porto da Lage, todos tomarenses. Contava esta, agradada, que os noivos tinham ido lá a casa participar o casamento, o que ela muito prezara pela consideração demonstrada, mas que, depois, tendo ficado a dizer-lhes adeus do cimo da escada, enquanto os dois, de braço dado, iam metendo pela horta, direitos à pequena ponte, vira algo que já não lhe parecera tão bem. Não é que ele, a meio do caminho, passara o braço por sobre os ombros da futura esposa e encostara a sua cabeça à dela? Sabendo que estavam a ser observados? Era escusado! (MFM)

3 de fevereiro de 2021

Memórias - A Menina Maria do Céu

 

A Menina Maria do Céu



O meu pai, homem de fé, era, apesar ou por causa disso e entre outras coisas, um grandíssimo anti-clerical.
Mas, não era porque fazia mal ao espírito ouvir patranhas de padres, que eu não deixava de possuir uma fé inocente, de saber o sinal da cruz, encomendar-me, ao deitar, ao meu anjo da guarda, rezar a Avé Maria e de conhecer minimamente a liturgia da igreja, ir à missa fazia parte da socialização da minha família,
Mas quando, por algum tempo, o  pater familias mudou de titular, o caso também mudou de figura.
A minha ignorância sobre as bases do catolicismo fazia com que, aos olhos do meu avô, eu fosse considerada pouco menos que uma selvagem! Apenas o baptismo me salvava de ser uma verdadeira pagã.
Antes fosse ceguinha, burra, ignorante das letras, mas desconhecer a Palavra do Senhor, não poder exercer o sagrado sacramento da Eucaristia?
Estávamos em Outubro, já atrasados, a catequese já começara em Sta Margarida. Apressadamente o meu avô tratou, ou teria mandado a minha avó tratar que era a mesmíssima coisa (do ponto de vista logístico que, quanto à Fé, tenho as minhas dúvidas - afinal era do lado dela a raíz jacobina de meu pai) de arranjar empenhos para que, do modo mais rápido, eu passasse a comportar-me como uma verdadeira filha de Deus.
E aqui entra a C. professora primária e catequista, conhecida da família, que ficou encarregada de resolver a minha situação anómala, de forma a, não só eu ser admitida já fora do prazo regulamentar, como poder fazer a primeira comunhão, no final do ano. A primeira condição pareceu pacifica, mas a outra fugia aos rigores do currículo da coisa, pois só se fazia a 1.ª Comunhão no final do 2.ºcatecismo. O estabelecido era um catecismo por ano, o 2.º era no segundo ano e não havia excepções, aos olhos de Deus não éramos todos iguais? Mas, fosse pela influência do meu avô ou persistência da C. chegou-se ao seguinte acordo: eu frequentaria os dois catecismos (porque tinha a sorte de serem dados pela mesma pessoa e, portanto, não serem simultâneos) e, no final do ano se veria (com muito franzir de nariz que pronunciava dúvida, o que, notei, irritou a minha avó), se eu estaria preparada para o Sagrado Sacramento.
E foi assim que, na companhia da C., lá fui, para ser apresentada e assistir à minha primeira aula da “doutrina” como dizíamos nós as crianças e o povo normal. Aprendi o caminho, saíamos de Porto da Lage, andávamos até às Sobreiras, atalhávamos no pinhal à direita, subindo um pouco, apareciam os Gaios e logo a capela.

Quando passei a ir sozinha, a meio das tardes de Domingo, às vezes não atalhava. Nas Sobreiras, quase ao pé do Paço da Comenda, havia um café e àquela hora, passava na televisão um programa infantil. Eu entrava e ficava um bocadinho a comportar-me como alguém da minha idade. Quantas vezes me assaltou a tentação de faltar e ficar, por uma vez, a fazer o que gostava! Mas o sentido do dever e a escolha do"caminho de pedras" que havia, um dia (estou à espera!) de me recompensar, faziam-me deixar o Franjinhas e o Saltitão e trepar a saber quem era Deus segundo o 1.º e 2.º catecismos




Não me lembro do meu primeiro dia de catequese. Lembro-me das aulas. Eram simples e, acho eu, alvo da minha mordacidade interior. Não admira. Com dez anos eu frequentava os dois primeiros catecismos, uma hora para cada um, destinados às crianças de seis e sete anos. Estavam eles entregues à menina Maria (das Dores?, do Carmo, de Jesus, do Céu?) inclino-me a que fosse do Céu, que era impropriamente chamada de menina pois era viúva, tinha até uma filha. Parece que o casamento terminara abruptamente com a morte do jovem marido numa tragédia qualquer poucos meses depois se ter realizado, e daí o hábito de menina nunca se ter perdido. Eu sabia que ela não gostava de mim. Acho agora que era daquelas pessoas que não gostam de ninguém, mas na altura eu não sabia dessas existências e a coisa deve ter-me intrigado. Os mestres geralmente prezavam-me, eu não os incomodava, portava-me bem, aprendia sem os cansar, não era inteligente bastante para confrontar-lhes o saber, tudo o que um professor pode querer.

Mas, neste caso, eu devia ser uma aluna incómoda, a culpa não era minha, as circunstâncias, escolhidas por ela ou por quem quer que fosse que decidira ser aquela a melhor forma de eu aprender, incorporando-me naquelas classes, não tendo em conta a minha idade ou o meu desenvolvimento mental, faziam que eu me apercebesse da fragilidade do método de ensino. Eu era mais velha e, como agora se diz, com uma vivencia muito maior do que aqueles pequenos de aldeia que tinham acabado de entrar na escola e não sabiam alguns, sequer, ler. Quando a menina Maria do Céu nos mandava olhar para as imagens coloridas eu, por desfastio, ia lendo o livro duas páginas à frente.
Nunca ela conseguia surpreender-me com o que nos contava. Eu já sabia e com mais rigor. Não que eu me pronunciasse, mas, então, quase como hoje, não conseguia disfarçar o enfado quando o sentia.
As matérias do 1° e 2° catecismos eram as mesmas, só que dadas com mais profundidade no 2°., e o método de avaliação consistia em saber as respostas às perguntas (iguais no 1° e 2°) estrategicamente colocadas no final de cada página, variando as respostas, suponho que mais elaboradas no 2.º.
Recordo-me que à pergunta – Quem é Deus? havia a resposta do 1.º e a resposta do 2.º. Como eu frequentava os dois, isto é, as duas aulas de seguida, sentada no mesmo banco, nem precisava de me movimentar, só giravam os colegas e mudava o livro, às vezes confundia-me.  Acontecia enganar-me e responder no 1° com as respostas do 2.° ao que ela me interrompia ríspida mas placidamente - Essa resposta não é daqui, é para mais tarde. E eu corrigia fazendo-lhe a vontade. No 2.° repreendia ela um rapazinho que não tendo estudado a lição respondia recorrendo a memória - Está mal, essa resposta era a do ano passado. Eu ia dando-me conta do ridículo de tudo aquilo e ela percebia.

Por fim, quis emendar a mão dispensando-me do 1.º catecismo com o pretexto de eu não perder duas horas, mas o meu avô não lho consentiu, eu não perdia nada, só ganhava, duas horas eram o dobro de uma, logo o dobro do conhecimento. E continuámos a aturar-nos uma à outra, ela, a minha arrogância calada, eu, a sua crueldade que me obrigava, para considerar a resposta certa, a repetir inúmeras vezes frases inteiras até terem, nunca o consegui, a entoação pretendida por ela.


E continuo a vê-la, magríssima e branca, com lábios sempre cerrados e tensos, de lenço e xaile pretos, a condizer com o resto da roupa, a elogiar os martírios da Santa Maria Goretti, em defesa da sua virtude. E a ajeitar o xaile com as nervosas mãos seráficas sobre o colo, quando nos explicava os motivos da dita defesa e, olhando de esguelha para mim, se embrulhava nas palavras enquanto eu, arregalada, lhe fazia que sim com a cabeça incentivando-a, enquanto a santa, de cima da cómoda da sacristia, compostinha com o seu ramo de lírios e olhos baixos, estou em querer que continha o riso ao ver a menina Maria do Céu explicar como ela tinha resistido a um rapaz que tentara "pecar com ela".

Mas, a despeito das nossas relações, considerou-me preparada e, no Verão, lá fui, acompanhada da família, à Igreja da Madalena tomar, pela primeira vez, o Senhor. O meu avô estava, com certeza, feliz. Por uma vez conseguira, não obstante ser no seu terreno, vencer o meu pai.(MFM)