Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
Todos os textos aqui publicados podem ser utilizados desde que se mencione a sua origem.

16 de fevereiro de 2021

Memórias- A Casa (cont)

 

Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos, nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos, fazer negócios com o avô, e as visitas.

As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria, eram habituais.

A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.


O avô amuou e foi a pé. Íamos as duas sentadas na tábua da carroça devidamente tapada com uma manta quando a tia reparou no tamanho da minha saia e não gostou. Por duas vezes ma puxou para baixo. Pretendia tapar-me as pernas, processo impossível, o vestido era curtíssimo como todos os daquele tempo, e mais curto ficava por eu ir sentada. Farta da insistência, não arranjei melhor para dizer do que a expressão um tudo vulgarucha (teria a avó razão ao proibir-me certas companhias?!) então em uso na minha escola – Mas o que é que tem? Isto não é nada do outro mundo! Ela olhou-me, surpreendida com o despropósito nada habitual em mim e disse- Pois não, não é do outro mundo! E aí é que reside o mal! Eu esbugalhei os olhos à resposta a tentar perceber, olhando para a sua cara acusadora. Quando compreendi, morri de vergonha das minhas escanzeladas e brancas pernas e só desejei ter ali um longo hábito, como os usados pelas santas dos altares, para tapar aquelas pecadoras.

Aguarela de Roque Gameiro

Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa.  Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa,  previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.

Madonna, Munck

Dentro do meu assombro com esta novidade brutal juntava-se o estilhaçar da imagem que eu tinha de maridos e pais, dos que eu conhecia realmente e da dos livros, e a profunda pena por aquelas mulheres e crianças espancadas pelo poder caprichoso de quem tinha força, o que me magoava e não me deixou sossegar por muito tempo. Tanto mais que não havia ninguém para me acalmar, como noutros casos, não era suposto eu conhecer nada disto, eu sabia que "não eram coisas para a minha idade", não havia, portanto, razão para conversa. Apenas na escola, onde me fui apercebendo da banalidade do fenómeno. Os pais assíduos das tabernas, bêbados ao entrar em casa noite fora pondo toda a família em sobressalto, espancando a mãe e os filhos que intervinham, por vezes a fuga para casa de vizinhos e parentes, eram a triste rotina de muitos dos da minha idade.
Mas até esta infeliz matéria, servia de tema à avó para uma das suas mise-en-scène habituais como contarei a seguir. Embora não com muita frequência, apareciam por vezes ao portão, os “pobres de pedir”. Pediam por amor de Deus algo para comer e, fugindo ao lema da família do marido, em que tudo tinha que ser merecido, senão de outra forma, através do trabalho, a avó dava sempre, sem exigir nada em troca. Dava sempre, pelo menos, uma mão-cheia de azeitonas ou de passas, passas de figo que havia sempre de sobra.

A Caravana Cigana, Van Gogh
Uma “pobre” que aparecia uma vez por ano era uma cigana. Fazia parte de uma caravana, composta por várias carroças puxadas por tristes e famélicos cavalos ou mulas, que atracava anualmente em Porto da Lage e por ali ficava uns dias.

Do lado de fora do portão, agarrando-se às grades chamava ela pela avó. Oh minha amiga, minha amiga! A avó aproximava-se e lá ficavam, a avó no pátio, a outra na estrada, separadas pelo portão fechado, falando longamente por entre as grades. Nestas conversas contavam coisas das vidas e famílias respectivas das quais nunca se saberá qual a mais fantasiosa. A avó inventava coisas pois "não convinha que ela soubesse da nossa vida” sem quaisquer remorsos porque, segundo ela, a outra fazia precisamente a mesma coisa. Mantinham assim uma amizade de longos anos, na qual só este sentimento era verdadeiro, tudo o resto eram flores (expressão da avó quando se queria referir ao supérfluo) baseada numa hora de representação anual ao portão de uma casa em nenhures, em que ambas eram simultâneamente as actrizes e as espectadoras! Sessão acabada, antes de se despedirem, a avó ia buscar uma garrafa de azeite e dava-lho. O azeite não se dava a não ser para fazer um agrado a quem se estimava ou se devia favores. De resto, destinava-se, por exemplo, para a candeia da Senhora da Piedade (costume tomarense) mas esse era do velho, dos anos transactos. Este era azeite do bom, do ano, que a cigana escondia debaixo das saias, enquanto agradecia muito, a recomendava muito a Deus para que lhe desse saúde e paciência, lembrando-lhe que Ele um dia havia de a recompensar. E ia-se. Se, por acaso lobrigava o avô, longe ou perto, imprecava-o sempre – O diabo te arrenegue homem maldito. Que vás parar às profundas do inferno. Homem maldito! repetia bem alto, levantando os braços com os punhos fechados unidos, enquanto a vista o alcançasse. O avô era surdo, quando se lhe gritava era pior, e neste caso, mesmo que ouvisse levaria tudo em conta das excentricidades de uma cigana, e não ligaria. Mas a coisa tinha sentido e era séria. No papel que lhe coubera na farsa arranjada na sua imaginação, a avó era uma vítima espancada constantemente pelo marido, o qual seria capaz de a matar se soubesse que tinha tirado um litro de azeite da talha. (MFM)

   

15 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa (cont)

 

Naquelas casas naquele tempo não havia “lixo”, aquilo a que hoje em dia se chama lixo doméstico  que é escolhido cuidadosamente atendendo à origem, e com todo o empenho colocado em inúmeros compartimentos diferentes “para reciclar”. É claro que haveria o equivalente, proveniente das limpezas e da cozinha mas não se chamava lixo, agora que penso nisso, nem sei se teria algum nome particular. Havia os “restos” da preparação da comida, o que estava cru, cascas de batata, legumes, etc., e os “restos dos pratos”, coisa quase inexistente pois a gente só se servia da quantidade que pensava ir comer e havia que ter sempre presente aqueles que queriam comer e não o tinham e por isso teríamos que comer tuuuuudo o que estava no prato (confesso que a causalidade entre os dois fenómeno me escapava quando era muito pequena, mas tinha tanta pena dos meninos que me contavam que tinham fome que, apesar de não perceber como, para não lhes piorar a situação, obedecia e comia- -assim nos era inculcado o sentimento de culpa  desde a infância, pena foi que, em vez de ser só para nosso beneficio o não fizessem também para intervir e procurar o dos outros).

Mas, enfim, como não eramos obrigados a comer ossos, espinhas, ou quejandos, sempre sobraria qualquer coisa para o Liró e para o Preto. Outros habitantes lá de casa, o primeiro gozando do previlégio de ter uma identidade, graças ao meu irmão que o baptizara, o outro, que não tivera essa sorte, era apenas nomeado pelo que a natureza o distinguira, sendo os dois considerados seres assim a meio caminho entre os cristãos o gado e a criação. A criação compunha-se de tudo o que tinha pena e mais os coelhos (estes nunca lá os conheci, parece que ficara toda a gente com repugnância dos ditos, depois da chegada da grande praga da mixomatose nos anos cinquenta), o gado eram os outros animais, e os cristãos seriam os sobrantes quer o fossem ou não (ali, como é sabido, eram, de grande qualidade).

Era doutrina vigente, tudo e todos terem a sua função e o seu dever a cumprir. Até eu, a mais protegida, tinha responsabilidades, ia à escola e fazia recados. Quanto aos animais, com excepção da mula, que fazia pela vida puxando a carroça e o engenho, os outros, cumprida a sua missão de pôr ovos, dar leite e reproduzir-se, mais tarde ou mais cedo obedeciam ao seu destino e iriam parar à panela, à nossa ou à alheia. No cumprimento daquele preceito, os dois gatos, ao contrário do que é habitual num pet doméstico (já naquele tempo o era), não eram apaparicados nem senhores de lugar de cadeirão nem mantinha, tão pouco estavam autorizados a pôr  as patitas dentro de casa. Não tinham, portanto, direito a pertencer à classe inactiva, como ninguém por ali tinha. Também eram obrigados a dar o seu contributo para o bem comum. Utilizando as suas competências, obviamente, para o que era mister (o que eu gosto desta expressão!) incentivá-los não lhes dando de comer. Só assim se entusiasmariam a atacar a rataria. Daqui se depreende que nem eles eram estúpidos para fazerem esse trabalho por puro prazer (dizer-se que gostam só pode ser calúnia, logo eles, tão amigos da limpeza, gostar de tarefa tão asquerosa?) nem, muito menos, a avó que lhes conhecia de ginjeira a manha e sabia do que eram capazes. E assim, mesmo que houvesse pratos a transbordar de espinhas de pescada cozida ou carapau grelhado, aqueles trabalhadores incansáveis não tinham direito a refeição completa, fossem buscar o segundo prato aos sótãos e lugares recônditos como era de sua obrigação! Acho que a avó nunca soube que parte da minha tigela de leite (coisa longe do meu agrado desde sempre) do pequeno almoço e do lanche tendia a contrariar, na medida do que me era possível, esta estratégia tão bem delineada.


Mas, voltando aos restos, os provenientes da confecção da comida eram encaminhados directamente para os consumidores seguintes, naquele nosso ciclo de vida. As galinhas, embora estas com direito ainda ao seu capricho, não adianta, acabam por estragar, mais vale ir já para os porcos e estes últimos com quem não se fazia cerimónia nenhuma, até porque não se davam ao respeito e não desdenhavam absolutamente nada. Criaturas absolutamente sôfregas, incapazes de parar de comer fosse o que fosse, viesse de onde viesse, mesmo as ricas espinhas de carapau esbulhadas ao Liró e ao Preto. Recordando aquela avidez cúpida, não posso deixar de compreender aqueles povos nossos conhecidos que rejeitam esta carne por impura. 
De facto!!! Mas, pensando melhor, antes assim, a bela costeleta do cachaço e a orelha de coentrada, o que é que têm a ver com o caso, se a gente não pensar nisso? Onde é que já vai o pecado original da coisa? Ser cristão é muito libertador.

Haveria também os desperdicios provenientes do que não vinha da horta ou dos nossos animais e se adquiria na mercearia ou drogaria, que muitas vezes era um único local. 
Nas mercearias não existiam produtos empacotados como agora, tinham elas tulhas de onde nos miravam e rescendiam os mais variados produtos, que eram daí retirado com uma pá, colocados em cartuxos de papel, caso do grão e feijão, arroz, massa de meada, levados à balança e aí ajustado o peso desejadoEm grosso papel pardo embrulhava-se a manteiga e o atum de conserva, por exemplo. Também assim era embalado o sabão, o azul e branco e o amarelo. O  papel dos cartuxos e o dos embrulhos, era guardado para embeber o azeite dos fritos, peixe, batatas fritas, croquetes e, quando já não tinha utilidade, queimado para ajudar a atear o lume. Tudo era aproveitado. Não havia plástico, pelo menos não embalagens. Já apareciam sacos desse material, verdadeiros tesouros, lavados e postos a secar para voltarem a ser usados. Os únicos materiais não orgânicos que poderiam ser dispensados seriam o vidro ou as embalagens de lata, mas nunca, serviriam para colocar coisas, por exemplo, para o avô dividir os pregos por tamanhos ou pôr os mais variados liquidos ou compotas.
Lembro agora as lojas dos meus encantos, as drogarias, lugar paradisiaco de cor, confusão e cheiro. O cheiro daqueles sítios era único, e para mim  completamente perdido no passado. Até que, há algum tempo, em Viseu, o reencontrei. Numa rua estreita e bonita, que depois passou a ser maravilhosa, entrei numa daquelas lojas, que reconheci por toda a parafernália que se alcandora pela porta e se estende sempre pela rua, para procurar um produto que procurava há anos. Encontrei-o claro, e reencontrei o cheiro. Ele provirá, no mundo real, de um produto ou de vários mas, para mim, cá no meu mundo de Dorothy Gale, ele surge, o cheiro nasce da visão louca de mil e uma cores e coisas desencontradas, do pente vermelho, do escadote, do alicate azul e da sertã cor de burro quando foge enfiada no cabo da vassoura laranja, da rede da capoeira e do shampoo que representa as últimas tendências em encaracolamento de cabelo! Nesta confusão de sentidos, os meus olhos cheiraram na primeira drogaria, depois noutra, mais outra, de tal forma que Viseu ficou, para sempre, a ser uma terra querida devido às suas drogarias encantadas.  (MFM)

(continua)

12 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa

.

 





O meu desejo, bem egoísta reconheço, de ter netos*, consiste, além das outras razões igualmente egoístas que faz com que a maioria das pessoas com filhos os queira ter, consiste, dizia, em encontrar sentido para as minhas memórias. Para que as quero eu se não tenho a quem as deixar?
São um património que só pode encaminhar-se para quem o entenda. Eu sei que é assim porque foi assim que sucedeu comigo.
Os meus netos viverão num mundo novo, o tal admirável, cujos contornos não consigo imaginar.
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. 
Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.

Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.


Vivi uns tempos numa aldeia que pertencia ao presente daquele tempo, tempo de transição que se encaminhava para um futuro que traria progresso e melhores condições de vida; conheci uma família alargada que se amava entre si, mas que fora disso não parecia ter particulares estimas no lugar, que tinha fumos de grandeza que se sustentavam no facto de os restantes, muito pobres, os considerarem ricos; e habitei numa casa com dois avós que pertenciam, eles e a casa,  à categoria do mundo encantado.
É dessa terra, dessa famíla e dessa casa enfeitiçada, cujo sortilégio me acompanha os sonhos e desses dois velhos fascinantes, ele cismador, devoto e trabalhador, ela inteligente, fantasiosa e de humor corrosivo, que eu hei-de, um dia, falar aos meus netos. 

Crianças que, pertencentes a outro mundo, hão-de apreciar conhecer este outro, que era triste e alegre, justo e injusto, rico e pobre, como o deles, como o de todos os tempos, mas onde as pessoas iguais às de sempre, viviam de outra forma, tinham outros hábitos, usavam outros objectos e, sobretudo, tinham outros sonhos. E onde, bem no centro desse mundo, para mim, estava a casa dos avós. Começarei por ela.

Era uma casa de lavoura. Sede da agricultura praticada em menos de uma dúzia de parcelas de terra, que por ali se chamam fazendas, dispersas pela freguesia, algumas, mas a maioria próxima da casa. Nas fazendas  mantinham-se, desde que havia memória, oliveiras centenárias, vinhas e figueiras e plantavam-se cereais na época própria. Em frente à casa, atravessada a estrada de terra, havia a “horta”, perpendicular  
à ribeira lá ao fundo, e sobre esta, uma pontesinha aparentemente frágil permitia a ligação rápida da casa ao centro da povoação. Na horta medravam as árvores de fruta e os legumes de época, destinados à família, regados pela água do poço que tinha fama de ser a melhor nascente daquela várzea, talvez mesmo da região, nunca secava. Nos anos em que a secura apertava era ver os vizinhos virem abastecer-se de água ao nosso poço, o único que permitia, ainda, que os alcatruzes a transportassem fresca e transparente, das suas profundezas, puxados pela nora que a mula fazia movimentar.
Logo à entrado de casa, à direita do pátio, ficava a casa de habitação no andar superior, a adega no piso térreo, com o competente lagar de vinho, de pedra, contiguo à única janela estreita, no meio do qual estava disposta uma prensa, destinada a espremer o mosto do bagaço das uvas. No resto do espaço, sempre fresco na calma do Verão, ficavam as alfaias agrícolas, a carroça e a charrete que em tempos servira para levar a avó às compras a Tomar, e, viam-se com dificuldade lá ao fundo, no meio da escuridão, encostados às paredes barris de madeira de vários tamanhos desde os gigantescos até aos pequenitos que hoje se vêm a servir de decoração nas casas típicas. Mas tudo isso, lagar e barris, já não tinha uso no meu tempo, apenas as grandes dornas entravam ao serviço uma vez por ano para transportarem as uvas, na carroça ou num tractor emprestado, até à adega cooperativa em Tomar, durante a vindima.
As acomodações, destinadas aos animais e a diversos arrumos, sucediam-se lá para dentro, separadas em lojas, quando no piso térreo, ou sótãos, quando no de cima. Havia o sótão das batatas e das cebolas, onde estas se dispunham em réstias e as outras se espalhavam pelo chão sobre sacas de sarapilheira. O "palheiro" ficava igualmente num sótão, localizado numa grande arrecadação de passagem, de alto pé direito onde, em cima, se colocavam os fardos de palha ou erva seca e por baixo residia a pobre mula, quase às escuras, por vezes acompanhada de uma vaca ou boi quando, não sei porquê, passavam acidentalmente lá por casa

Mas havia também um sótão como todos os que conhecemos, onde se guardavam as velharias, móveis antigos, alguns bons demais para estarem a uso, argumento formidável que só poderia vir da boca da avó (não era ironia,os móveis eram de facto bons) objectos de uso pessoal, espelhos e quadros provenientes de um primo de um bisavô de Tomar, que fora criado de quarto do rei D.Luís, o qual lhe teria dado aquelas prendas – a importância que se dava aquilo era nenhuma!, uma pequena arca encoirada a que eu sempre aspirei e que os deuses, invejosos, mais tarde terão desviado para o Olimpo, e outras coisas consideradas sem préstimo de momento, tudo envolto nos competentes reposteiros tecidos pelas aranhas, mas que eu não hesitava em transpor para entrar naquele mundo maravilhoso, onde havia, entre outros tesouros uma arca cheia de revistas de moda dos anos trinta e quarenta e de livros antigos, alguns escolares, que eu adorava folhear.


Por baixo existia o celeiro, onde, dentro de grandes arcas de madeiras repousavam o milho e o feijão, que se mediam através de caixas de madeira – “os alqueires” - cada uma com seu tamanho correspondente a determinada capacidade que se media precisamente em alqueires. Já o azeite, ali também guardado em talhas de barro, media-se em almudes e, talvez por isso, as bilhas de latão com tampa, de diversos tamanhos, nas quais também se colocava o azeite, se designavam genericamente por “almudes”. Mas estas antigas unidades de medida, o alqueire e o almude, seriam só usadas por hábito e para uso doméstico, já tinham sido ultrapassados, oficialmente,  pelo litro e pelo quilograma, pois também existiam uma balança e um "litro" se a intenção fosse vender.
O pátio lá atrás, onde também havia um poço com nora e um tanque, onde a prima Anita lavava a roupa, estava rodeado de alpendres, um aberto com gamelas baixas onde se avistavam as cabeças dos porcos sempre ocupados a comer, e onde, mesmo ao lado, descansavam há décadas as enormes galeras cheias de pó, antigos carros puxados por bois que tinham servido para transporte de mercadorias entre a estação local de caminhos de ferro e Tomar. Nos alpendres fechados, situava-se, num, o forno onde, depois de amassado pela Celeste, se fazia o pão ao sábado, no outro, ao lado, era o local onde se preparavam os alimentos que requeriam mais espaço e provocavam sujidade, se matavam e depenavam as galinhas, se faziam as compotas, as caldas de tomate e pimento para todo o ano, a avó fazia queijo fresco quando havia leite de cabra ou ovelha, apertando com as duas mãos a coalhada até sair o soro e colocando-a depois em cinchos de aluminio, se retalhavam azeitonas e cortavam finas as couves incapazes para a cozinha, misturando-as com farelo para dar às galinhas. 
Quando passaram a ser servidas à mesa dos restaurantes as migas com couve como fazendo parte da “cozinha tradicional portuguesa”, não pude deixar de recordar em como era percursor e requintado o menu das galinhas de Porto da Lage. Aliás, eram mesmo bem tratadas, aquelas galinhas. Passavam o dia numa capoeira grande e arejada neste pátio e, quando se punha o sol, abria-se-lhes a porta e elas iam sozinhas, atravessando o redil das cabras e ovelhas e o palheiro da mula, até ao pátio da frente onde se situava o seu dormitório todo emparedado, que as mantinha fora do alcance dos predadores. 
Por essa hora, também os pombos estavam de regresso de um longo dia fora de casa e aguardavam que lhes fosse aberta uma guarita no mesmo local para, um a um, por uma ordem que só eles saberiam, se instalarem para dormir.
Era aquele o último, talvez único, acto que, a avó ou eu, estávamos obrigadas antes de “ir para cima”, fechar a porta do galinheiro e a guarita dos pombos. O que não queria dizer que o avô não fosse, depois, confirmar quando “fechasse tudo”.


Já há muito que o pessoal se fôra, viera das fazendas, deixara o que trouxera, colheitas, mato, erva, e o material, a enxada, a forquilha, o que fosse, se despedira “até amanhã se Deus quiser” e partiam para suas casas levando fruta se a havia ou lenha se fosse Inverno, “Vá com Deus, primo” respondia o avô. Muitos dos trabalhadores, gente muito pobre, do Paço da Comenda, eram família, povo sem sorte que ficara pelo caminho, mas não deixavam de ser parentes e assim tratados. Agora restava ao avô tratar do gado, dar-lhes comida, “tratar das camas”
 era de manhã quando tivesse ajuda, percorrer todos os cantos com a lanterna acesa assegurando-se que tudo estava como deveria e voltar a ver se os portões, os três que franqueavam o seu forte ao exterior, estavam bem fechados. Só depois subia. Ao cimo das escadas, onde havia um lavatório, lavava as mãos, apagava a lanterna e deixava-a aí. “Boa noite se Deus quiser” dizia  entrando finalmente na cozinha alumiada pelo candeeiro a petróleo.(MFM)
     
(continua)






*Isto foi escrito antes de ter netos. Hoje a última coisa para que "os quero" é para lhes transmitir memórias, mas admito que já os levei a fazer "visita guiada" ao que aqui descrevo.

11 de fevereiro de 2021

Memórias - A Prima A.

 

A Prima A.

 

Ao lado da horta existia a fazenda da prima A. Tinha um pereiro, que deitava ramadas para a estrada, por cima do muro de pedras, foi o único pereiro que conheci na vida, nem sei se o nome será este, sei que se chama peros à fruta que dá. Considerando que as pereiras dão peras, concluo que se aquele dava peros, seria um... ou não? Também não interessa, os peros, verdes, pequeninos eram deliciosos, costumávamos apanhá-los da estrada, a prima não se importava, até fazia gosto. Ao lado, ainda lá está bem maltratada, uma roseira de Santa Teresinha, de florinhas eternas, na minha imaginação estarão sempre lá, pequeninas e perfumadas, cheirando a rosas como era de obrigação delas antigamente. A minha madrinha Alice, amiga de flores, ao contrário da minha avó, ia lá por vezes apanhar uns raminhos, colocava-os depois numa jarrinha em cima da cómoda. As rosas, os cheiros da cera dos móveis e do chão, do calor seco na penumbra das portadas das janelas fechadas de Agosto, são estes os aromas sob os quais escrevo tudo o que me lembro


Pois a prima A. tinha um burro, ia 
para a fazenda de burro, não morava longe, era logo depois da ponte, embora aos meus dez anos tudo fosse muito mais longe que hoje. Mas seria perto, tanto que ela, à volta, ia muitas vezes a pé, levando o burrinho à arreata. A razão da vinda do animal, era a rega e o transporte de produtos. Mal chegava, colocava o burrinho na nora, e ele ali passava a tarde, ou a manhã, a dar voltas ao poço, puxando os alcatruzes, cheiinhos da água transparente, as vezes parecia-me azul, e despejá-los no tanque. Daqui a água saía a correr, ia pelos regos, direita às hortaliças ou ao milho, ou, nas grandes calmas, às caldeiras das árvores, para que dessem bom fruto na época. A prima cuidava da rega, encaminhando a água, deixava-a entrar nos canteiros fechava as saídas com terra com ajuda da enxada, esperava que todo o canteiro ficasse encharcado, depois fechava o canteiro, a água corria outra vez livremente até ao próximo e o processo recomeçava.

Eu estou a inventar porque nunca vi de perto a prima A. a regar, mas vi muitas vezes outras gentes e tudo me diz que ela seguia este processo secular, quando eu a observava lá de casa, corcovada sobre a enxada no meio das couves e das abóboras. No Verão a prima ceifava, pequenas quantidades é certo, para levar para os coelhos lá para casa, para as grandes colheitas arranjava ajuda, mas tudo se completava num dia, a fazenda era pequena. Por vezes acompanhava-a uma sobrinha, era professora algures, solteirona, mas aquelas mulheres não encontravam par porquê, caramba? E vinha pelas férias, à tarde de sábado ou no Domingo, aqui só para colher qualquer repolho ou pé de alface, que em dia santo não se trabalhava. Ao fim do dia a prima carregava os seirões com produtos da sua horta e lá ia ela, de chapéu de palha, a pé, mais o burrinho, estrada fora, quando a melancolia já descia por cima da nossa casa e se trocavam as boas noites prima, até amanha se Deus quiser.
Agora que olho para trás e tento recordar a sua figura, imagino que talvez ela fosse uma excêntrica, uma velha hippie de 70 anos, afinal aquele era o tempo deles, e não o soubesse. Não era uma camponesa, vestia roupas simples, saias estreitas de fazenda, blusas de algodão, sapatos de grosso cabedal, casaco comprido de lã no Inverno, nada de tamancos ou lenços na cabeça, dir-se-ia uma modesta senhora da cidade, talvez mesmo uma estrangeira, uma country woman inglesa.

Era interessante de ver, aquela velha magra, morena de sobrancelhas carregadas, cabelos ainda pretos puxados atrás num toutiço, um pouco alquebrada dos ombros, de lenço de seda ao pescoço no Verão e xaile de malha castanha no Inverno, sentada de lado encima do seu burrinho ou com ele a pé pela mão. Mantinha sempre uma cara séria, nunca a vi sorrir, também a ouvi falar poucas vezes, mas era solícita e disponível, sempre pronta a ajudar, sobretudo, muito trabalhadeira, a minha avó admirava-a muito. Curioso que a minha avó, que nunca pisou a terra para a cultivar, raramente para apanhar alguma coisa da horta, que se achava superior e olhava com condescendência para quem o fazia, tinha consideração pela prima A. A ponto de lhe conceder a honra de sua sucessora.

Metera a avó na cabeça que morreria antes do marido e preocupava-se com quem tomaria conta dele depois da sua partida. Dedicava-se por isso, com muita seriedade, coisa que os adultos conhecedores da coisa achavam, alguns mórbido, outros uma brincadeira ou mesmo loucura, mas que eu, com o meu pragmatismo da adolescência até nem achava mal (atendendo a que ele não sabia escolher a roupa que vestia, nem que era preciso aquecer água para fazer chá ou café) a seleccionar, a partir de solteiras e viúvas conhecidas, a futura companheira certa para o seu marido. Depois de criteriosa escolha entre candidatas que nunca imaginaram terem estado sujeitas a semelhante apuramento, foi eleita a prima A. como a herdeira ideal.
E a avó tratou de o comunicar ao interessado. Procedeu como sempre que pretendia apresentar-lhe uma questão séria, na convicção que ele reagiria como era habitual. Passavam-se assim os interlocutórios entre o casal: quando a  refeição (o almoço a que eles ainda chamavam jantar, a noite não era ajeitada para se discutir coisa nenhuma) já se aproximava do fim, ela dizia: - Olha João, estive a pensar numa coisa, vê lá o que te parece ….Ele continuava a comer sem olhar, enquanto ela ia falando. Se a ideia exposta lhe agradava, interrompia rápido e dizia – Muito bem… e seguia-se a escalpelização do assunto. Se não lhe agradava, deixava-a acabar, nunca a interrompia, terminava a refeição com calma, arrumava os talheres no prato e levantava-se da mesa. Sem dizer uma palavra. Chegado à porta da cozinha, procedia conforme o costume diário, virava-se e informava-a sobre o que iria fazer e onde estaria, de tarde. Estava dado o sinal de que o assunto não devia voltar a ser falado (antes que se levante por aí a gritaria  em uso sobre a condenação retroactiva do machismo, diga-se, neste caso, em defesa do avô,  que ela, por vezes, tinha ideias de tal forma mirabolantes, de irritar um santo, comentava a nora e minha mãe -esta que vos conto perto de outras é pacifica- que ele, ao fim de cinquenta anos tinha mesmo que ter arranjado uma estratégia de sobrevivência).
Desta feita, porém, depois de a ouvir,  reagiu -Não serve, é muito negra!- continuou a comer.
Agora sim! Já pode começar a desanca que eu acompanho! Homens! Insensibilidade masculina no seu melhor, só pensam neles! Pobre avó, tão empenhada no bem-estar dele! Pobre prima, preterida por não se encaixar no seu ideal de beleza, não obstante as suas inúmeras qualidades!
(MFM)

 

Pintura exibida na imagem  - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)

 

10 de fevereiro de 2021

Memórias- A Augusta

 


          A Augusta

Ao lado da casa da tia Anita morava a D. Elisa. Entrava-se para casa dela subindo as mesmas escadas do pátio da tia e passando pelo alpendre de que já falei. Se havia outra entrada não conheci, foi sempre este caminho que tomámos quando ia provar os vestidos lá a casa - um deles o de risquinhas cor- de- rosa, com peitilho de botõezinhos, que eu adorava e que estreei no exame da 4.ª classe. A D. Elisa, além de costureira, era senhora também de uma figura impressionante, daquelas que é suposto na tradição, nos livros infantis e no cinema, im-pre-ssio-nar mesmo as criancinhas, não me metia medo porque era afável e delicada e também porque, diga-se a bem da verdade, nunca estive sozinha com ela, mas o seu físico desmedido e as suas feições - era altíssima e espadaúda, tinha um grande nariz e o rosto cheio de pelos e verrugas - deixavam-me .... bem, não vale a pena entrar em detalhes, já viram muitos filmes e sabem como ficam os miúdos quando vêm as gémeas da D.Elisa. 

Como se tudo isso não não bastasse, a D. Elisa era de Estarreja, uma terra, e até uma palavra, que eu custei a acreditar que existisse, parecia-me um arremedo de uma conjugação do verbo estar: que eu esta-rre-ja, que tu estarrejas, ... que Estarreja me perdoe...coisas de crianças.

Mas, vá-se lá saber porquê, havia mais gente de Estarreja em Porto da Lage. Uma delas a Augusta, que fora pequena lá para casa, lá crescera e de lá casara, tendo os avós por padrinhos. Eu só me lembro dela já como vizita, a viver em Moscavide e a trabalhar numa fábrica da Nestlé. A avó gostava dela e orgulhava-se do seu percurso. Penso que se orgulhava, mais ainda, do que ela própria tinha feito pela Augusta.
Ela viera, nos anos quarenta, não sei como, muito jovem e, para além de analfabeta, muito ignorante, para casa dos meus avós. 
Contava a avó que um dia, quando a tinham mandado apanhar a azeitona do vento (aquela que cai naturalmente devido à ventania) ela disse que não ia. Que desculpassem mas sempre tinha aprendido lá na terra dela que não se colhia nada da terra dos outros. Deslindada a confusão lá se percebeu: ela não queria, e fazia muito bem, ir apanhar a azeitona na fazenda do Bento, um vizinho lá dos Olivais. 
Em outra ocasião, tendo sabido que a gente abonada punha o dinheiro no banco, não deixou de mostrar o seu espanto e de perguntar a razão, porquê precisamente num banco e não noutro sitio mais abrigado, numa caixa por exemplo, quando um banco tinha um buraco no meio por onde o dinheiro cairia?

A Augusta não era, portanto, burra,  pensava com os instrumentos que conhecia e, mais do que isso, era como deve ser, quer dizer, distinguia o bem do mal, tinha valores. Faltava-lhe o conhecimento e o sotaque exigido, pois falava com o assento particular da sua gente que troca os b pelos v e o inverso, diz avelhas e obelhas  e que bai ber e oubir as vandas de música, o que a avó considerarava muito feio. Mas tudo se compôs, aprendeu a falar, a estar e tirou a 3.ª classe nocturna, faltando-lhe a 4.ª por não ter sido leccionada em Porto da Lage.
Quando a conheci era uma verdadeira lisboeta, desenvolta no falar e no vestir, que vinha sempre com o marido, de comboio, passar o Natal aos Olivais. Depois, durante meses, havia sempre, em vez de cevada,  chocolate em pó para pôr no leite (MFM)




9 de fevereiro de 2021

Memórias - A Isabel

 

                                                     A Isabel





Por vezes eu era requisitada para fazer

 recados. Ia à mercearia ou à farmácia, de saco e porta-moedas lá dentro, com a recomendação de nunca o tirar para que não se perdesse (uma vez aconteceu, por ir com ele na mão; quando, depois do drama advindo do caso, o encontrei, ao fim de muito procurar, no meio das ervas logo a seguir à ponte, a tia Maria congratulou-me, para ela isso era bom sinal, significava que andas de bem com Deus, menina). Eram, a mercearia e a farmácia, lugares onde era conhecida, até mesmo apaparicada, e por isso agradáveis de ir. Mas nem sempre assim foi. Houve uma ocasião em que, com certeza por motivos imperativos de que não me lembro, fui mandada sair do circuito habitual e ir mais longe.


Fiquei encarregada de, ao fim do dia, ir buscar o leite à 
vacaria. Aquilo teve a sua graça ao princípio, era uma forma de, equipada com fervedor e carteira dentro do saco habitual, me deslocar para uma zona desconhecida da povoação. 
Mas rapidamente tudo se tornou muito maçador, passei, embora sem consciência mas sentindo-o, à classe dos trabalhadores invisíveis e humilhados e deixei de gostar da tarefa. Eu chegava à guarita que havia no muro da vacaria, através da qual, pelo menos no meu caso, se atendia o público e ficava por ali à espera, até que, por sorte, aparecesse um adulto que pretendesse, também, ser atendido. 
Cedo fiquei a saber que, mesmo que me vissem, nunca me atenderiam, desde que estivesse sozinha. Ainda não tinha aquecido o lugar e já estava desejosa de me desembaraçar dele, quando a Isabel veio transformar esta minha desamada aventura.                                         
Era uma rapariga despachada, criada na casa de um familiar,  já não sei qual, e me conhecia daí, que, ao chegar gritava lá para dentro–Oh seus calaceiros, não vêm que têm aqui fregueses. Toca a despachar.

Outras vezes - Mas vocês são cegos, não sabem que a miúda está aqui há que séculos? E, desta forma, lá se foi animando aquela minha breve lida diária, pois, mesmo que tivesse que esperar tinha companhia, e que rica companhia.

Ela era bem-disposta, afectuosa e simpática com toda a gente, contava coisas com graça, ria-se muito. E atrevida, brejeira até, com os homens, que a namoriscavam todos, novos e velhos, seduzidos, digo eu agora, por aquela força da natureza, jovem e bem feita, de pernas e braços descobertos, mãos na cintura estreita de onde caía, airosa sobre as ancas, uma saia rodada que ela, ao andar obrigava a esvoaçar.

Mas essa garridice desaparecia, quando, não estando mais ninguém além de mim, eu não contaria para a descrição requerida, saía de uma pequena camioneta que ficava ali parada até ser oportuno, o condutor com quem a Isabel se ia esconder num canto.

Eu só perdia a companhia porque, antes, a Isabel garantia que logo seria atendida, ia-me embora e eles ali ficavam. Outras vezes, quando eu chegava, já eles lá estavam, mas mesmo assim ela não se esquecia de mim, deixava-o por uns segundos e vinha gritar à guarita que me atendessem e voltava para a companhia dele.

Assim que deixou de ser necessária a minha ida à vacaria, também deixei de ver a Isabel.

Depois, um dia, voltei a ter notícias dela. Quando se tornou público que um corpo tinha sido encontrado dentro de um poço. Informação a que as minhas companheiras de escola acrescentaram mais, descobrira-se, depois de morta, que estava grávida.

Ao homem da camioneta continuei a vê-lo como sempre quando ia com o avô à missa ao Domingo a Sta. Margarida, acompanhado da mulher e dos filhos. Iam também para a missa.(MFM)



                                      


8 de fevereiro de 2021

Memórias - Aos Domingos


                          Aos Domingos









 
 
                     
Aos sábados à tarde, de manhã havia escola, levavam-me a apanhar a carreira, para ir a Tomar visitar o resto da família. Atravessávamos a aldeia silenciosa, não se via ninguém, o horário era pouco depois do almoço, passávamos pela passagem de nível e parávamos no cais da cal, onde ficava a paragem.
Como íamos sempre muito cedo, havia muito cuidado, que não houvesse atrasos, lembro-me de me aborrecer terrivelmente na espera, e, quando já tinha saltado tudo o que havia para saltar e estava ao meu alcance para pesquisar (por ali tudo era muito solitário aos fins de semana e já começava a ficar em ruínas), levava um livro para ler.
Depois, com o dinheiro contadíssimo na mão direita fechada, o da volta, igualmente contado, para não ser enganada nos trocos, ia na carteira depositada dentro da pequena maleta, subia para a camioneta enquanto era recomendado ao motorista que esta menina, qual encomenda, era para ficar em frente ao turismo
Domingo ao fim do dia fazia o percurso inverso.
Quando ficava em Porto da Lage, ao domingo ia com o avô à missa de manhã, a menos que a tia Alice estivesse por lá ou se arranjasse alguém para ficar em casa, a avó não ia. Desde que, há muitos anos houvera um assalto, que nunca se deixava a casa sozinha. À missa, comigo, a pé, ia-se a Sta. Margarida ou a S. Silvestre, nunca mais longe. Fui, poucas vezes, a Cem Soldos, mas de carroça, com o avô ou com a tia Maria. Fosse pela idade ou pela condição física dispensavam-me de acompanhar o avô que, quando as suas obrigações o impediam de ir aos locais mais perto, ou estes, por qualquer motivo mudavam os horários previsíveis, ia a Porto Mendo, Casal da Fonte ou até Fungalvaz.

Á tarde o avô visitava os familiares ou amigos doentes. Quando se tratava de senhoras eu ia também. Visita habitual ao domingo à tarde era à tia Anita*. Não sei se estaria exactamente doente, mas não saía de casa. Uma casa bonita à beira da ribeira, por onde se entrava por um portão de madeira e, atravessando um túnel que ficava por baixo do edifício, se chegava a um pátio fechado, quadrangular onde, lá ao fundo, havia capoeira e coelheiras, e um curral com ovelhas que, vendo-nos, deitavam as cabeças para fora e com os seus arrastados mééé….. nos davam as boas vindas. À entrada do pátio costumava estar, à espera do avô, o tio António, marido da tia. Eu achava que os dois podiam ser gémeos, não fosse o tio ser mais feio, tinha um dos olhos grande, azul e sem expressão, era de vidro. Mas de resto eram iguais, no tamanho e no tipo, ambos de fato de domingo, camisa branca e gravata, sapatos engraxados. Era bonito de ver aqueles dois velhos cumprimentarem-se com afecto – Como vai compadre?- apertando com força as grandes mãos calejadas. Penso que o avô, tirando os irmãos, tratava a parentela inteira por compadre. Era padrinho de toda a gente, de todos os sobrinhos mais velhos, sinal da consideração que lhe tinham, dizia a avó orgulhosa, atendendo a que havia um irmão mais velho, preterido em relação a ele.

A seguir à curta conversa de circunstância (assunto maior a tratar ficava para depois, quando o avô descesse sozinho e fossem juntos ver a nova ovelha ou o adiantado das favas ou dos melões na horta que se estendia lá ao fundo), o tio ficava cá em baixo e nós subíamos para o lindo alpendre de madeira que dava para o pátio, onde, invariavelmente estava sentada a tia. Eu percebia que o avô e ela eram irmãos que se estimavam. Mais do que a cerimónia e consideração com que aqueles tios se tratavam todos uns aos outros, com aquela o avô parecia transfigurar-se, ria-se e falava até. O avô nunca falava, devo ter caminhado sozinha com ele longos quilómetros durante largas horas sem trocarmos palavra. Saíamos mudos de casa e entrávamos calados. Mas não me lembro de isso me incomodar, falar também não era, nunca foi, coisa em que gastasse muito o meu tempo
. 
Ouvir sim, gostava, e gosto, de ouvir quem não canse, quem não se queixe se não tem de quê, quem não fale só de si sem cuidar se interessa a quem ouve e quem conte boas histórias. Era o caso da tia Anita, uma senhora que se interessava por quem chegava, informava que era surda e por isso pedia ao interlocutor que se fizesse entender (o único Mota, além de mim, que vi fazer isso, oh seus vaidosos! acham que os outros não percebem que são moucos???) e contava coisas antigas. Falou-me do pai (custava a crer a uma miúda pequena que uma pessoa com aquela idade tivesse tido pai!) quando uma vez me perguntou pela escola e divagou sobre a importância da educação, o pai mandara os filhos todos à escola, mesmo as raparigas, mais valia perder as oliveiras que fossem precisas mas que se desse as letras aos filhos, teria ele dito.
Falava também naquele sitio mítico onde tinha nascido, a quinta da Belida, lugar que, quando olho para trás vejo agora que só na boca dela parecia real. Os outros velhos não falavam disso, quando ela perguntava: Lembras-te João?, ele torcia a boca e abanava a negativamente a cabeça,  e os da geração seguinte viam-na quase como uma fantasia, sinal que pouco lhes tinha sido transmitido sobre isso.
Quando a conversa não era comigo eu escapulia-me lá para dentro. Na sala, mantida na penumbra com as portadas semi-fechadas, para se preservar do muito calor lá de fora, nos cantos, havia floreiras altas de madeira nas quais assentavam pastoras e príncipes de faiança, em que elas transportavam grandes cestas carregadas de frutas ou flores, tudo pintado num delírio de cor que me encantava. Eu não me cansava de as admirar, ia visitá-las sempre que ia lá a casa. Ainda hoje estas figuras são a minha perdição.
Pelo crepúsculo voltávamos para casa, pela estrada ou pela nossa ponte, consoante o tempo ou a localização do visitado, silenciosos, tal como tinhamos ido.(MFM)

* Já aqui falei nas outras   duas   queridas  tias